segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Artigo científico selecionado e apresentado no 3° SEMINÁRIO PARA A SUSTENTABILIDADE – FAE Centro Universitário

Artigo apresentado em 12 de novembro de 2008 no 3° SEMINÁRIO PARA A SUSTENTABILIDADE, promovido pela FAE Centro Universitário. Foi apresentado de acordo com a metodologia de exposição oral amparada em PowerPoint, seguida de debates, no contexto do painel sobre a área temática “Gestão Social e Políticas Públicas para a Sustentabilidade”, explorando a subdivisão “Direito ambiental e ações para a sustentabilidade”. (Leia a notícia completa).



A COBRANÇA COMO INSTRUMENTO
DE CONTROLE JURÍDICO DO USO DA ÁGUA E
SUA INSUFICIÊNCIA DIANTE DO DESENVOLVIMENTO
SOCIOAMBIENTAL SUSTENTÁVEL


Robson Ochiai Padilha
(Mestrando em Direito - UNICURITIBA)
padilha@tedeschiepadilha.adv.br



Gisela Maria Bester (Professora
do Mestrado em Direito – UNICURITIBA) gisela.bester@aena.br




RESUMO

Este artigo tem por objeto a análise jurídico-normativa da cobrança do uso da água, em meio à problemática decorrente da aplicação cega da racionalidade econômica no trato das questões ambientais. O objetivo principal é demonstrar a inconsistência da cobrança como forma de controle do recurso hídrico, já que o atual modelo econômico de consumo veio provocando, nas últimas décadas, uma profunda degradação socioambiental. Como resultado, espera-se que o presente texto contribua para com o debate ambiental, especialmente com a análise crítica da Lei de Recursos Hídricos brasileira, sendo tal norma de suma importância para o desenvolvimento sustentável do País.

Palavras-chave: Neoliberalismo, Escassez da Água, Cobrança, Sustentabilidade, Regulação
Estatal da Economia, Direito Ambiental.

INTRODUÇÃO

O atual estado do meio ambiente é um assunto emergencial de relevância mundial. Reconhecido como tema transversal, exige abordagem multi e intradisciplinar, abrangendo, no caso do Direito, muitas das suas subáreas, estando intimamente relacionado, entre outras, com as do Direito Constitucional, Administrativo, Civil, Penal, Processual, Empresarial, do Consumidor e do Trabalho. Nenhuma disciplina jurídica pode ignorar sua importância e os problemas ligados à sua degradação, tais como o aquecimento global e as mudanças climáticas.

Particularmente em matéria de recursos hídricos a situação é assaz alarmante, principalmente porque há, no mundo contemporâneo, um sério problema de contaminação e de aumento de sua demanda, o que tem provocado a situação de escassez da água. Nenhuma atividade humana sobrevive sem água, razão pela qual a Constituição Federal brasileira instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos, a qual elegeu o princípio do poluidor-pagador como forma de controle do recurso já degradado. Mas, ainda que se faça a cobrança de quem em princípio seria o poluidor, há que se criticar essa racionalidade economicista, a qual, dentre outros efeitos, já ocasionou o consumo irresponsável, gerando uma emergência socioambiental.

Os recursos hídricos não poderiam ser simplesmente apropriados somente pelo pagamento do quanto por eles é cobrado, já que isso ocasionaria um desvirtuamento do caráter público e social da água. Ainda, a lei deveria adotar não somente um caráter punitivo, mas também um critério promocional do Direito, incentivador de condutas positivas e de comportamentos sustentáveis, ambos necessários em tempos de crise ambiental.

1. O TENSIONAMENTO DA RELAÇÃO SOCIEDADE–NATUREZA

Sabe-se que na Grécia antiga o sentido da existência só poderia se escorar em mitos e divindades. Segundo Ademar Heeman, “os valores caíam do céu, mediados pela voz do soberano, que de modo indiscutível ditava o significado e o destino de todos. Com autoridade irrestrita, essa figura divina concentrava todos os poderes e legitimava o certo e o errado, o bem e o mal.” (2000, p.10)

A sociedade grega defendia a existência de uma relação muito próxima entre o homem e as forças naturais. A natureza era considerada sagrada, até porque não se conseguia explicar racionalmente os diversos fenômenos naturais que aconteciam. Os deuses egípcios também tinham seu poder representado por forças naturais e astros celestes. E como a tecnologia humana de tais épocas não permitia melhor compreensão, controle, ou mesmo dominação das forças da natureza, o homem estava numa certa relação de igualdade com os demais seres terrestres, vivendo todos sob a égide das leis naturais.

Com o surgimento do Cristianismo despontam as primeiras manifestações ideológicas de dominação do homem sobre a natureza. A influência da doutrina cristã aumentou no mundo, e com ela o ensinamento bíblico do livro do Gênesis: “Crescei, multiplicai-vos e dominai a Terra.” (Gn 1, 2728) Concebia-se então o entendimento de que a natureza fora criada por Deus para benefício do homem. A conseqüente expansão do Cristianismo auxiliou na progressiva inversão da relação de poder entre o homem e a natureza.

Luciane Tessler explica que, “a partir do século XIV, com o estabelecimento do Humanismo, aparecem os primeiros discursos de índole antropocêntrica que, reforçados pelo ideal iluminista e o racionalismo, acabam consolidados, sobretudo, após Descartes.” (2004, p. 26) A existência humana é supervalorizada pela própria ciência, propiciando esta o melhor entendimento sobre as forças da natureza. A lógica e a razão instrumental se sobrepõem à crença da natureza como representação divina. O iluminismo valorizava a ciência ao invés da crença divina, alterando aos poucos a forma de racionalizar a natureza e o mundo.

O surgimento do Estado Liberal, no século XVIII, reforçou a ideologia do homem no centro dos acontecimentos, de modo a pregar a dominação total do meio ambiente como meio de alcançar o “desenvolvimento” na modernidade. A Revolução Industrial aprimorou as técnicas e os conhecimentos de exploração, tanto que houve um enorme incentivo à criação de motores e ao conseqüente uso de combustíveis não-renováveis.

Por sua vez, o crescimento do comércio e o surgimento de novas escalas de mercado incitavam a livre apropriação dos bens naturais. Os recursos ambientais deixaram de ser vistos como fonte de subsistência para ser concebidos como fonte de matéria-prima para alimentar o processo produtivo em franco progresso. As reservas naturais foram sendo utilizadas para alavancar a economia, principalmente nos países industrializados, mas a exploração dos recursos ambientais ganhou escala mundial inclusive nos países mais pobres.

2. A SOCIEDADE LIBERAL E NEOLIBERAL

A ideologia liberal dava novo contorno à sociedade moderna, alterando profundamente a forma de apropriação de bens, inclusive de recursos naturais. Defendia-se a menor interferência estatal nas relações de mercado. A economia ganhou força e deveria funcionar livremente, para que fosse possível, pela concorrência, encontrar um preço natural aos produtos produzidos. Mas, se inicialmente havia uma concorrência predatória, num segundo momento da modernidade percebeu-se que no jogo da livre concorrência teria que haver duplo proveito. Isto é, maximizar o lucro para o vendedor e minimizar o dispêndio para o comprador. Michel Foucault definiu de forma muito clara esse segundo momento do liberalismo na modernidade:

        Encontramos portando a idéia, que estará agora no centro do jogo econômico tal como é definido pelos liberais, de que na verdade o enriquecimento de um país, assim como o enriquecimento de um indivíduo, só pode se estabelecer no longo prazo e se manter por um enriquecimento mútuo. A riqueza do meu vizinho é importante para o meu próprio enriquecimento, e não no sentido em que os mercantilistas diziam que o vizinho precisa ter ouro para comprar meus produtos, o que me permitirá empobrecê-lo, enriquecendo-me. (FOUCAULT, 2006, p. 75)

Assim, a partir dos estudos de Adam Smith, abandona-se o propósito do Estado como mero regulador do jogo econômico, pois a livre concorrência entre os países teria resultado negativo e insustentável. Para que o jogo econômico deixasse de ser um jogo de resultado nulo, seria necessário também que houvesse receitas permanentes e contínuas. Neste momento, o mercado concebe a idéia de expansão do comércio e produção em massa, mas a principal conseqüência dessa alteração do liberalismo moderno talvez tenha sido o incentivo ao consumo. O papel do Estado neste contexto seria o de regular e assegurar a relação de troca. Propaga-se assim pela Europa a idéia de desenvolvimento cooperado, com vistas a atingir um progresso comum.

Michel Foucault identificou neste contexto do mercado europeu a origem do fenômeno da mundialização. O comércio europeu começa a se espraiar pelo mundo, marcando também a expansão da racionalidade econômica, sendo que, esse fenômeno de mundialização do mercado altera igualmente a forma de governar. Neste momento a economia torna-se globalizada e tal fenômeno vai modificar as racionalidades e a relação entre o Estado e a economia. Nos estudos da origem do neoliberalismo, Foucault tratou da escola alemã denominada de ordoliberalismo, que defendia a idéia de concorrência pura no terreno econômico, ao mesmo tempo em que propunha medidas de intervenção estatal. A segunda grande escola destacada por Foucault foi o anarcoliberalismo americano, o qual procurou ampliar a racionalidade capitalista a campos tidos até então como não-econômicos, de modo a quantificar todas as condutas humanas e sociais. O papel do Estado neoliberal é o da vigia ou do controle das regras, mas o interesse preponderante é a proteção do sistema econômico, ou seja, governa-se para a economia de mercado e não para a sociedade. “O neoliberalismo não vai portanto se situar sob o signo do laissez-faire, mas, ao contrário, sob o signo de uma vigilância, de uma atividade, de uma intervenção permanente.” (FOUCAULT, 2006, p.182)

Nessa concepção reguladora da economia o Estado positiva as condutas de anti-monopólios, principalmente em nome da defesa da concorrência. A concorrência não é apresentada como um fenômeno natural do mercado, mas decorrente de um jogo de desigualdades e tendências de acumulação. A política neoliberal tem como tarefa arranjar o espaço para formar uma concorrência, ainda que ela exista somente para garantia de mercado, com a redução de preços. Portanto, seria preciso governar com vistas ao mercado, que necessitava da defesa regulatória da concorrência, a fim de criar proteção contra os abusos de sua própria racionalidade, que é autofágica.

3. A RACIONALIDADE ECONÔMICA

Para Michel Foucault, nesse contexto, de prevalência e dinâmica mercadológica, é que nasce a figura do homo oeconomicus, que, “não é o homem da troca, não é o homem consumidor, é o homem da empresa e da produção.” (FOUCAULT, 2006, p. 271) Trata-se de um sujeito de interesse distinto do sujeito de direito, no pensamento do século XVIII, e da noção de sociedade civil, correlata ao modelo de governo liberal.

Estabelece-se uma identidade mercadológica ao homem na medida em que a sociedade neoliberal importa a perspectiva empresarial das coisas. Assim, o homo oeconomicus neoliberal é o homem da empresa e da produção: a empresa se torna o agente econômico fundamental. Cada um é definido como empresário, o qual deve trabalhar para elevar seu próprio capital, de modo a superar as dificuldades do mercado. Essa noção egoística empreendedora acaba por influenciar e conduzir a forma de racionalizar a vida.

Porém, na sociedade com conotação empresarial, há problema de multiplicação de litígios, conforme também analisou Foucault:

        Quando mais você multiplica a empresa, quanto mais você multiplica os centros de formação de uma coisa como uma empresa, quanto mais você força a ação governamental a deixar essa empresas agirem, mais, é claro, você multiplica as superfícies de atrito entre cada uma dessas empresas, mais você multiplica as ocasiões de contenciosos, mais você multiplica também a necessidade de uma arbitragem jurídica. Sociedade empresarial e sociedade judiciária, sociedade indexada à empresa e sociedade enquadrada por uma multiplicidade de instituições judiciárias são as duas faces de um mesmo fenômeno. (2006, p. 204)


O sujeito econômico personificado em uma empresa se comporta no campo econômico na forma da concorrência em função de planos e projetos. Quanto mais a lei dá aos indivíduos a possibilidade de se comportar como querem na forma da livre empresa, mais se desenvolve essa racionalidade concorrencial, que faz aumentar o número de litígios. A busca individual e empreendedora pelo acumulo de capital, em obediência ao preceito concorrencial, acaba ocasionando um problema de perda de referenciais e valores humanos.

Em prol do lucro certos valores sociais e ambientais são ignorados. Cada indivíduo disputa seu espaço no mercado, ocasionando uma hipercomplexidade social, onde a atividade judicial é fomentada pelo aumento da disputa. Cabe também ressaltar as falhas decorrentes da racionalidade instrumental, quando o Judiciário é chamado a resolver casos cada dia mais complexos, nos quais há um direto confronto entre vários valores e princípios constitucionais, tais como: ordem econômica, contratos, delimitações da propriedade, função social da propriedade, dignidade humana, direito à vida, direito ao meio ambiente, proteção ao trabalho.

Na globalização cada sujeito seria incentivado pela economia a buscar seus interesses particulares, também como parte da racionalidade consumista. De certo modo, esse fenômeno que propaga a individualidade também prejudica a idéia de vida em sociedade, já que se age não propriamente em beneficio da coletividade. Por sua vez, o Estado não cria obstáculo ao interesse individual, pois a cada dia mais torna-se partícipe e regulador desse modelo econômico, no qual todos seriam conclamados a desenvolver seu próprio ganho, de modo a maximizar finalmente o processo.

Porém, essa racionalidade econômica não deveria ser adotada pelo Estado, conforme os ensinamentos de Foucault: “deve-se governar com a economia, deve-se governar ao lado dos economistas, deve-se governar ouvindo os economistas, mas não se pode permitir, está fora de cogitação, não é possível que a economia seja a própria racionalidade governamental”. (2006, p. 384)

É interessante anotar que existem diversas racionalidades além da econômica, mas esta prepondera na pós-modernidade em relação às demais. Nessa racionalidade economicista predomina a importância da acumulação do capital em detrimento aos outros valores indispensáveis à vida equilibrada em sociedade.

Milton Santos, ao criticar especificamente a racionalidade econômica, mencionou sua força e seu poder colonizatório sobre os demais campos do mundo da vida: “agora se pode, de alguma forma, falar numa vontade de unificação absoluta alicerçada na tirania do dinheiro e da informação produzindo em toda parte situações nas quais tudo, isto é, homens, idéias, comportamento, relações, lugares, é atingido”. (2007, p. 51)

4. A SUSTENTABILIDADE COMO NOVA RAZÃO

Pode-se dizer que tanto no modelo liberal, marcado pela liberdade de mercado, quanto no modelo neoliberal, grifado pela defesa da concorrência na pós-modernidade, prepondera uma lógica econômica, a qual muita vezes se sobrepõe aos interesses humanos, tal como a defesa promocional do ambiente.

São evidentes as várias conquistas recentes dos saberes tecnológicos e do acesso mundial a determinados produtos, bem como a importância do mercado nas relações sociais. Todavia, de outro lado, a busca pelo “desenvolvimento”, fundado na racionalidade meramente econômica, provocou enormes prejuízos sociais e ambientais com graves impactos, tais como: empobrecimento mundial, desemprego, novas doenças, crescimento de aterros e lixos tóxicos, contaminação da água, desertificação, poluição nas cidades, efeito estufa e aquecimento global.

De forma ainda bastante tímida, até por reação a esses eventos, a comunidade cientifica começou a discutir a noção de desenvolvimento a qualquer custo. Nasceu assim, segundo Enrique Leff, “[...] uma consciência ambiental nos anos 60 com a Primavera Silenciosa de Rachel Carson, e (que) se expandiu nos anos 70, depois da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, celebrada em Estocolmo, em 1972.” (2001, p.16)

As nações participantes da conferência, na cidade de Estocolmo, entraram em consenso de que seria necessário criar organismos internacionais, já que os problemas ambientais afetam a todos indistintamente. A nova proposta formulada na década de oitenta do século XX era alcançar o crescimento econômico sem impactar demasiadamente o ambiente e a sociedade. Surge então, a noção de desenvolvimento sustentável, como paradigma de uma nova racionalidade não meramente econômica. Para Enrique Leff, o princípio de sustentabilidade surgiu “como uma condição para construir uma nova racionalidade produtiva, fundada no potencial ecológico e em novos sentidos de civilização a partir da diversidade cultural do gênero humano. Trata-se da reapropriação da natureza e da reinvenção do mundo”. (2001, p. 31)

Muito mais do que uma forma de obstar a desmedida exploração dos recursos ambientais, o princípio da sustentabilidade propõe a mudança de valores, isto é, de racionalidade, pela alteração no modo produtivo e no estilo de vida da sociedade de consumo. Seria necessário conter não somente os abusos cometidos contra o ambiente, já que o conceito de crescimento sustentável reclamava o rompimento com a pobreza e a mudança do hábito consumista.

Como profundo estudioso do assunto, Ignacy Sachs acrescenta:

        Em nossa lista, a sustentabilidade social vem em primeiro lugar, pois ela se sobrepõe à própria finalidade do desenvolvimento. A sustentabilidade econômica e política são, ao contrário, de natureza instrumental, enquanto a ecológica ocupa uma posição intermediária, pois faz parte de ambos os domínios (finalidade e instrumentalidade). (2007, p. 297)

Portanto, a proposta de desenvolvimento sustentável estaria tripartida entre a necessidade de proteção ambiental, a promoção social e o crescimento econômico. A Assembléia-Geral das Nações Unidas, em 1983, reconheceu esse conceito de desenvolvimento sustentável como norma. O reflexo desse entendimento no Brasil pode ser notado com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil, em 5 de outubro de 1988, que estabeleceu de forma expressa, no artigo 225, a defesa do meio ambiente como valor inerente e necessário à sobrevivência dessa e das futuras gerações.

É interessante anotar que a Constituição Federal de 1988, no capítulo da Ordem Econômica, estabeleceu, em seu artigo 170, preceitos que propagam dignidade humana, defesa do meio ambiente, redução das desigualdades sociais, ao lado da racionalidade econômica, com a defesa da livre concorrência.

Especialmente para discutir a emergência ambiental, na cidade do Rio de Janeiro, em junho de 1992, os então 117 países integrantes da ONU – Organização das Nações Unidas, firmaram diversos acordos e protocolos, merecendo destaque a denominada Agenda 21, que comprometeu as nações signatárias a adotar métodos de proteção ambiental, justiça social e eficiência econômica, criando um Fundo para o Meio Ambiente com o intuito de se tornar o suporte financeiro das metas fixadas.

Porém, tal período de inegável conquistas socioambientais coincidiu também com um cenário de maximização de lucros. Apesar das suscetíveis crises econômicas globais, é certo que o atual sistema favoreceu o aumento do lucro, mediante o alargamento do consumo, o que teria propiciado a acumulação de capital. Por outro lado, tem-se o aumento da pobreza e a diminuição do emprego, embora predomine a racionalidade econômica como forma de se alcançar o desenvolvimento, até mesmo nos países mais periféricos.

Os Estados Unidos consomem grande parte dos recursos ambientais do planeta e esse modelo econômico é propagado pelo mundo. Alain Touraine, ao criticar a expansão do consumismo, também acrescenta: “é impossível reduzir o consumo ao interesse e ao status social, porque ele é invadido tanto pela sedução, pelo recôndito tribal e pelo narcisismo, como por facetas que não se deixam reduzir à imagem de uma sociedade piramidal de produção.” (2002, p.152) O atual ritmo de consumo dos recursos naturais disponíveis supera a capacidade de recuperação da Terra, sendo tal fato notório na questão do petróleo.

Independente desses problemas, com graves conseqüências socioambientais, persiste no mundo a idéia de desenvolvimento social atrelado ao desenvolvimento econômico, que nada mais é do que a própria razão econômica. A globalização permite que produtores e investidores se unam cada vez mais, como se a economia mundial fosse um mercado comum, de modo a permitir o livre fluxo de capitais. Ademais, com os avanços tecnológicos e a difusão dos meios de comunicação, tornou-se mais evidente o poder de propagação mundial da razão economicista, que sobretudo, convida a todos à acumulação do capital e ao consumo, quando se sabe que apenas pouquíssimos o conseguirão.

Ignacy Sachs assim analisa o quadro atual do pensamento econômico dominante que se considera universalmente válido, o que lhe confere na realidade um caráter a-histórico e utópico:

    • na prática, tal atitude nada mais é senão uma tentativa de negar a existência de um campo próprio para as teorias do desenvolvimento sustentável, contra tudo e contra todos, que a transposição mimética das experiência dos países industrializado para o resto do mundo constitui a via acertada que leva ao desenvolvimento. (2004, p. 263)

Todavia, existe um certo consenso, pelo menos entre alguns doutrinadores, de que a economia de mercado deve em parte migrar para sociedade de mercado, esta que tem como característica principal a retomada dos valores socioambientais.

Milton Santos identificou o momento atual como sendo crítico. Veja-se:

        A crise por que passa hoje o sistema, em diferentes países e continentes, põe à mostra não apenas a perversidade, mas também a fraqueza da respectiva construção. Isso conforme vimos, já está levando ao descrédito dos discursos dominantes, mesmo que outro discurso, de crítica e de proposição, ainda não haja sido elaborado de modo sistemático. (2007, p. 168)

Como parte da construção do discurso crítico, surge a defesa da sustentabilidade, de modo a nortear uma epistemologia não só ambiental, mas também de cunho social. De outro lado, não se pode negar a integração da economia nessa nova racionalidade ambiental. Porém, é certo afirmar que na razão ambiental haverá uma retomada dos valores humanos, de modo a priorizar as questões coletivas e não apenas os interesses individuais.

5. A ESCASSEZ DOS RECURSOS HÍDRICOS

A sobrevivência humana depende do consumo contínuo de água para que sejam mantidos os processos vitais. Um homem precisa de, no mínimo, dois litros de água potável por dia para sobreviver. Todavia, quando se consideram as estruturas urbanas, onde além do consumo para sedentação ainda existe o consumo voltado para a higiene, esta média sobe para 100 a 200 litros por dia, por pessoa.

A sociedade sempre dependeu da disponibilidade d’água. Existem diversos exemplos históricos, de grandes civilizações, de grandes centros urbanos, que cresciam na medida da disponibilidade do recurso hídrico, como os egípcios em torno do Nilo, os maias na península de Yucatan, os habitantes da Mesopotâmia em torno dos rios Tigre e Eufrates e, no caso brasileiro, os diversos povoados fundados por bandeirantes em torno dos vários rios brasileiros, sendo que o Rio São Francisco pode bem sintetizar essa assertiva.

A água é utilizada em grande escala pelas empresas, já que a maioria das indústrias utiliza-na no processo fabril, de modo que sem o uso do recurso hídrico a fabricação de alumínio, ferro, medicamento, refrigerante, fertilizante, plástico, embalagem, papel, alimento, seria paralisada. Do mesmo modo, a agropecuária e a agricultura irrigada paralisariam suas atividades na falta do recurso. Por essa razão, tenta-se atribuir um valor econômico à água, já que seria em parte uma matéria-prima da atividade empresarial.

O recurso hídirico é finito, e importa lembrar que se 2/3 (dois terços) do Planeta Terra são constituídos de água, somente 2,5% (dois vírgula cinco por cento) desse volume é de água doce. Considerando que 69% (sessenta e nove por cento) da água doce estão depositados nas calotas polares e nos aqüíferos subterrâneos profundos, resta apenas um estoque mínimo de água disponível e potável.

O Brasil possui condição hídrica privilegiada, já que os recursos superficiais gerados representam 50% (cinqüenta por cento) do total de recursos da América do Sul, e 11% dos recursos mundiais. É fato que o Brasil possui um enorme potencial hídrico, o que faz parecer absurdo discutir o problema de escassez. No entanto, esta fartura brasileira é muito mal distribuída, tanto social quanto geograficamente. Grande parte da população menos abastada ingere água sem tratamento, que normalmente contém níveis inaceitáveis de coliformes fecais, dentre outros componentes prejudiciais à saúde. Portanto, já se detecta o problema de disponibilidade de água potável no Brasil.

Vladimir Passos de Freitas traça um breve panorama regional destes problemas:

        O Brasil, nos últimos anos, vem tomando consciência do problema. Afinal um povo que possui os maiores rios do mundo tem dificuldade em imaginar que pode ficar sem água. Mas, apesar de termos cerca de 13,7% da água doce disponível no mundo, a verdade é que os problemas vêm se agravando. No Nordeste a falta da água é crônica. No Sudeste ela é abundante, porém de má qualidade. A invasão de áreas de mananciais hídricos pela população carente é um dos maiores problemas de São Paulo. Os dejetos industriais lançados ao rio Paraíba do Sul tornam precária a água que abastece o Rio de Janeiro e outras cidades. Falta água para irrigar os arrozais do Rio Grande do Sul. (2002, p. 18)


Atualmente, a população mundial e a produção industrial vêm crescendo em um ritmo muito rápido, e, no Brasil, isto não é diferente. Isso acarreta o conseqüente aumento da demanda por recursos hídricos, que como já fora dito, se encontra em atual estágio de escassez.

6. A COBRANÇA COMO INSTRUMENTO DE CONTROLE DO CONSUMO DA ÁGUA NO BRASIL

Conforme ensina Vladimir Passos de Freitas, “é possível dizer que durante décadas e mesmo sob a vigência do Código das Águas de 1934, o enfoque dado ao tema era sempre mais sob a ótica do direito privado do que do direito público.” (2002, p. 19) O Código Civil de 1916 era amplamente conhecido e aplicado, por outro lado, o Código das Águas sequer era muito lembrado, tanto que em parte caiu em desuso. A reação mais notável do Estado brasileiro no tema da água foi estabelecer o domínio exclusivo da União e dos Estados sobre os recursos hídricos – a chamada estatização da água, prevista na Constituição Federal de 1988 nos artigos 20, III e 26, I, talvez com o propósito de mitigar a idéia de propriedade individual.

Também com a edição do artigo 21, XIX, da Constituição Federal de 1988, estabeleceu-se a criação do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, o qual foi regulamentado pela Lei Federal nº 9.433, de 8 de janeiro de 1997, que instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos. A Lei nº 9.433/97 dispôs sobre três principais aspectos: disponibilidade de água, utilização racional e cobrança como instrumento de controle e recuperação dos recursos hídricos.

A forma de implementação dessas premissas deverá ser amplamente discutida pela sociedade, já que os critérios de disponibilidade e o valor da cobrança irão causar enorme controvérsia. Atualmente, quando os consumidores pagam às companhias de abastecimento (no Estado do Paraná à Companhia Paranaense de Saneamento – SANEPAR), trata-se de uma contraprestação apenas pelo serviço de tratamento.

A nova cobrança de uso da água, prevista na Lei 9.433/97, será feita de forma cumulativa, o que certamente trará bastante discussão. “É evidente que o tema é polêmico e que acarreta sérias conseqüência econômicas. Imagine-se, a título de exemplo, uma indústria que venha utilizando há anos as águas de um rio e que se veja obrigada, agora, a pagar pelo uso.” (FREITAS, 2002, p. 22)

Para além desse aspecto de cumulatividade no pagamento do recurso, cumpre analisar primordialmente o critério racional-econômico adotado na Lei de Recursos Hídricos, já que tal modelo economicista teria proporcionado acumulação de capital, com o aumento da pobreza e a degradação ambiental, sendo tais efeitos insustentáveis. Ademais, é importante anotar que existem pouquíssimas normas no sentido de promover o desenvolvimento sustentável, isto é, incentivar o consumo consciente, o reuso da água, a redução dos impactos ambientais ou até mesmo a recuperação das áreas degradadas, devolvendo-as em melhor estado.

A técnica legislativa, ao invés de simplesmente cobrar (forma de punição), deveria promover e premiar condutas sustentáveis e conservacionistas, inclusive das empresas. Nesse sentido podem ser aproveitadas as preciosas lições deixadas por Norberto Bobbio:

        No caso de um comportamento permitido, o agente está livre para fazer ou não fazer alguma coisa, ou seja, está livre para valer-se da própria liberdade para conservar ou para inovar. Se o ordenamento jurídico julga positivamente o fato de o agente valer-se o mínimo possível de sua liberdade, procurará desencorajá-lo a fazer o que lhe é lícito. Como se vê, a técnica do desencorajamento tem uma função conservadora. Se, ao contrário, o mesmo ordenamento jurídico julga positivamente o fato de o agente servir-se o máximo possível de sua liberdade, procurará encorajá-lo a se valer dela para mudar a situação existente: a técnica do encorajamento tem um função transformadora ou inovadora. (2007, p. 20)


CONCLUSÃO

Procurou-se demonstrar neste breve artigo que em parte a cobrança pelo uso dos recursos hídricos é justificada pela possibilidade de recuperação dos cursos de água degradados, porém, é importante analisar também o problema relativo à seleção econômica decorrente dessa cobrança. O Brasil, por razões históricas, possui um sério problema de distribuição de renda, sendo este um forte inconveniente ao controle do consumo da água por meio da cobrança. As forças do mercado são insuficientes para conter os problemas de demanda e de consumo, preponderando, em casos de litígio ou na escassez da água, o poder econômico.

As grandes empresas, assim denominadas pela capacidade econômica e pelo controle do mercado, irão internalizar os custos decorrentes da cobrança da água. Ou seja, o pagamento pelo uso da água será incorporado ao custo do produto, de modo a transferir o ônus financeiro ao consumidor final. Na prática, não haveria maiores fábulas à cobrança, já que este custo seria repassado na cadeia de consumo.

Já as micro e pequenas empresas, assim denominadas pela falta de capital suficiente e pela incipiente participação no mercado, não poderiam absorver os novos custos da cobrança de forma satisfatória, ocasionando o agravamento do problema de distribuição de renda. Tais pequenos atores econômicos não detêm suficiente força no mercado globalizado para controlar o preço do produto, ou, ainda, não possuem margem suficiente para absorver esse novo custo financeiro. Ademais, a simples cobrança autorizaria a exportação da água em detrimento da necessidade de abastecimento no País.

Defensores da cobrança da água apegam-se no princípio do poluidor-pagador, claramente adotado pela Política Nacional de Recursos Hídricos, em seu artigo 4º. Trata-se da imposição econômica ao usuário, pela utilização dos recursos ambientais, já que o simples uso ou consumo, ocasiona a degradação ao meio ambiente. Portanto, o principal viés do poluidor-pagador seria econômico-reparatório, imputando ao poluidor os custos decorrentes da atividade poluente. Porém, dois problemas surgem dessa questão: primeiro o da imprecisão em determinar o grau de poluição provocada por cada usuário; não se investiga qual impacto foi anteriormente causado, nem quem foi o responsável pela escassez do recurso hídrico. Simplesmente cobra-se um preço, fixado segundo critérios de disponibilidade. Portanto, consumidores não exatamente são responsabilizados na proporção de seus danos. O segundo problema imediato seria que o princípio poluidor-pagador permite que a poluição seja autorizada, desde que pago o preço – a própria criação do mercado de carbono, nos termos do Protocolo de Kyoto, permite que países industrializados comprem “quotas de poluição”, de modo a prosseguir com suas atividades industriais nocivas ao meio ambiente –, além, é claro, de pautar-se pela racionalidade econômica, que fora a responsável pela exaustão dos recursos ambientais, pelo excessivo consumo e, finalmente, pelo presente aquecimento global.

Por um outro prisma, Enrique Leff alerta para outro problema:

        A natureza está sendo incorporada ao capital mediante uma dupla operação: de um lado, procura-se internalizar os custos ambientais do progresso atribuindo valores econômicos à natureza; ao mesmo tempo, instrumentaliza-se uma operação simbólica, um cálculo de significação (Baudrillard, 1974) que recodifica o homem, a cultura e a natureza como formas aparentes de uma mesma essência: o capital. Assim, os processos ecológicos e simbólicos são reconvertidos em capital natural, humano e cultural, para serem assimilados pelo processo de reprodução e expansão da ordem econômica, reestruturando as condições da produção mediante uma gestão economicamente racional do ambiente. (2006, p. 140)


Portanto, para Enrique Leff não seria possível monetarizar os bens ambientais. Por exemplo, não seria possível definir o preço da Amazônia, assim como não se pode atribuir preço aos seus respectivos rios. Quando a água passar a ter valor econômico, estar-se-á assimilando uma racionalidade economicista, de algo que não deveria ser simplesmente valorado segundo critérios meramente monetários, dada a sua natureza essencial. Assim sendo, em um segundo momento poderia ser monetarizado o uso do oxigênio, principalmente em locais com grave poluição atmosférica. Porém, tal critério de capitalizar os bens naturais subverte os valores de trocas, de modo a perpetuar a relação mercadológica e de apropriação dos bens ambientais, tal como nos modelos liberais, que resultaram na atual emergência socioambiental.


Enrique Leff complementa:

      Assim, as estratégias do capital para reapropriar-se da natureza vão degradando o ambiente em um mundo sem referentes nem sentidos, sem relação entre o valor de troca e a utilidade de uso. A economia do desenvolvimento sustentado funciona dentro de um jogo de poder que outorga legitimidade à ficção do mercado, conservando os pilares da racionalidade do lucro e o poder de apropriação da natureza fundado na propriedade privada do conhecimento científico-tecnológico. As estratégias fatais da globalização econômica conduzem a uma nova geopolítica da biodiversidade, da mudança climática e do desenvolvimento sustentado. (2006, p. 145)


A sociedade neoliberal busca a maximização de lucros e o incentivo ao consumo. Nesse cenário também extremante complexo e competitivo (intensificado até entre as próprias empresas) cada ator social disputa violentamente os escassos recursos ambientais, o que acaba ocasionando distorções econômico-sociais no próprio sistema. O resultado disso é o aumento no número de litígios e a instabilidade social, sendo tais situações contrárias ao desenvolvimento nacional e à construção de uma sociedade livre, justa e solidária, como apregoa a Constituição Federal da República brasileira.

Não se deveria fazer preponderar o valor econômico da água, já que a vida, a dignidade humana, a saúde, o pleno emprego, o meio ambiente, as micro e pequenas empresas, ou seja, todo o conjunto de relações sociais e ambientais dependem da justa e ampla disponibilidade do recurso. A água, em princípio, não poderia ser considerada apenas como mais um produto de alto valor agregado, tal como o petróleo.

Tornar a água praticamente uma commodity a priori não resolveria os problemas de escassez. A simples cobrança tornaria possível a livre apropriação individual do recurso, o que em tese também afastaria a constitucionalizada propriedade pública da água. Por isso é que o presente artigo enfatizou o viés econômico da Lei de Recursos Hídricos, com o propósito de alertar para os problemas daí derivados e propor a discussão do tema segundo uma outra racionalidade, que ao mesmo tempo deve regular a atividade econômica e a atuação empresarial sem esquecer a necessária ordem/dever constitucional de sustentabilidade socioambiental, rompendo-se, assim, com a idéia de desenvolvimento econômico a qualquer preço.

REFERÊNCIAS:

BOBBIO, Norberto. Da estrutura à função. Barueri: Manole, 2007.

FOUCAULT, Michel. O nascimento da biopolitica. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

FREITAS, Vladimir Passos de. Água: aspectos jurídicos e ambientais. Curitiba: Juruá, 2002.

HEEMANN, Ademar. Natureza e sociedade: a controvérsia sobre os alicerces da conduta humana. Revista Desenvolvimento e Meio Ambiente, Curitiba, UFPR, nº 1, p. 9-19, 2000.

LEFF, Enrique. Saber ambiental: sustentabilidade, racionalidade, complexidade, poder. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001.

______. Racionalidade ambiental a reapropriação social da natureza. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.

SACHS, Ignacy. Rumo à ecossocioneconomia: teoria e prática do desenvolvimento. São Paulo: Cortez, 2007.

SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. São Paulo: Record, 2007.

TESSLER, Luciane Gonçalves. Tutelas jurisdicionais do meio ambiente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.

TOURAINE, Alan. Crítica da modernidade. Petrópolis: Vozes, 2002.

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